Bem-vindo (a)

Para quem acredita na existência de Deus, há sempre uma luz radiante, ainda que a vida pareça mergulhada em profunda escuridão. Chega um momento que precisamos nos libertar dos grilhões, das amarras e correntes que nos enclausuram num pequeno mundo, sairmos da nossa caverna e irmos de encontro à luz.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Lembranças de um beijo


Quando a solidão castiga, as lembranças ressurgem e o pensamento aflige e devasta a pacífica serenidade que existe no meu ser, os olhos se dissimulam detrás das pálpebras e lacrimejam orvalhos de manifestações de sentimentos melancólicos, no peito os vulcões remoinham incandescentes aquecendo as ondas do desejo que me vem importunar, o coração pulsa forte implorando, exaltado para desprender de uma ofegante agonia e o sangue corre nas veias incendiando meu corpo em chamas. 

Ouço gritos, uivos desvairados, é loucura, perturbação, delírios. Não suporto essa obsessão e divago pelas trilhas das minhas mágoas, pelos campos da repercussão e me descubro enclausurado nas colinas das lembranças de um beijo impetuoso e contagiante que propaga uma imensidão de calor dilatando a matéria e apagando a minha alma. Num instante, a magia transmite minha ilusão para uma suposta realidade mitológica e eu vejo-me loucamente debruçado no espírito daquela deusa afrodisíaca que me suga e obstai nas entranhas dos vales do padecer. 

Debruçado, sou conduzido numa viagem alucinante repleta de mistérios e holocaustos, onde o preceito não permite o retorno daquele que embarca e prende-se na alma de um ser endeusado. Sou pregado na cruz do delírio e levado arrastado para o gólgota da aflição e antes da execução as trombetas tocam nênias anunciando o meu padecer. Penso que realmente chegou a minha hora, imagino que a vida teve fim! Logo, as pálpebras se movimentam, meus olhos reaparecem, o coração pulsa ritmicamente, o sangue corre pacificamente nas minhas vias, os vulcões dormem, o meu corpo liberta-se das chamas e vagarosamente, frágil, sem forças, percebo-me num leito molhado de lágrimas, num ambiente cinzento, pálido, triste, mas real.

 Só então, vejo que tudo isso é loucura, pensamentos impiedosos, melancolia, delírios, lembranças de um beijo ardente e inesquecível daquela deusa que nunca mais a vi e, tento me desprender das lembranças, mas estou num cativeiro, sou prisioneiro por me contristar.

Gilson Vasco
Escritor

Lágrimas do alvorecer


Quando amanheço pensando em você, fico situado imóvel sem movimentar sequer as pálpebras. O corpo fica trêmulo, os olhos lacrimejados direcionados para o telhado do meu cinzento recinto vazio. Sinto um sufocante aperto dentro do peito que temo o meu melancólico coração ser esmagado, estraçalhado e fatiado pelas lâminas afiadas dos vidros pontiagudos dos pensamentos que parecem extirpar de mim a vida. Meu leito parece mover-se, tremer-se, balançar-se com o zumbir dos motores dos pesados sentimentos de solidão que estremece meu corpo ainda mais. Meu cérebro se transforma em gelo e emite descarga gotejante para todas as vias da massa e da alma, estimulando o meu corpo a chorar.

Por um instante chego a ver-me num insuportável rancor, estresse, ódio ou mesmo um grande tédio. Tenho medo de enlouquecer. Vejo que se permanecer naquele leito, sucumbido naquela estância poderei morrer! Divago pelas ruas da imaginação que mesmo no alvorecer são insuportáveis pelo impiedoso barulho.

O tempo lentamente vai passando... De repente vejo-me embrenhar no meio da floresta fragmentada pela minha fúria, em direção ao rio da ilusão que divide ao meio a cidade ilusória. Ouço hinos dos pássaros, o barulho saudoso das cascatas e sinto o cheiro da natureza. O sol surge irradiante cristalizando as quedas d’água. Toco-as. Como são frias! Dou um mergulho rio adentro. Banho todo o meu corpo com aquele remédio cristalino e percebo a calma, minha alma estar curada naquele momento!

Repouso numa pedra admirando tudo. Comovo-me ao observar as cachoeiras, duma, vejo um semblante em forma de fumaça, sinto o cheiro do seu corpo, sinto a sua presença, vejo você e vou ao seu encontro, mas você some... Incrédulo, movimento as pálpebras procurando uma explicação. Não sei se eu estava adormecido, delirando ou quem sabe tenha sido talvez um pouco de miragem. Dou mais um belo mergulho. Saio novamente, cubro-me com meus frangalhos e sigo rumo à minha fria moradia... No caminho, novamente na cidade da inexistência, percebo-me passando em frente a sua casa, olho disfarçadamente para o interior e te vejo despercebida, sentada linda, linda, numa poltrona branca e macia. Sou golpeado por uma vontade de penetrar ou mesmo te chamar para ouvir-me falar-te do meu amor mais uma vez. Já sei a resposta: “não te quero”. Desisto e continuo. Nesse momento percebo que não tenho rancor, ódio, nem mesmo estresse. O que tenho é solidão e desejo de ser amado por você. Sei que isso é impossível e que no outro alvorecer tudo isso vai acontecer para fazer-me derramar cascata de lágrimas.

Gilson Vasco

Escritor

A vida: como ela é


Numa pequena comunidade havia um menino muito pobre e humilde que morava numa casinha com sua mãe. O tempo passou, o menino cresceu e sua mãe naturalmente estava muita velhinha. Lá, mesmo sem recursos, sua mãe cuidava dele desde pequenininho, nunca lhe deixara faltar nada, sofria muito para lhe dar conforto e, apesar das grandes dificuldades que ambos enfrentavam, eram muito felizes.

Tempos mais tarde, de uma hora para outra, esse homem ficou rico e tudo em sua vida mudou: dinheiro, mansões, carros luxuosos, viagens para o exterior, mulheres, festas e muitas diversões passaram a fazer parte do cotidiano daquele homem, o qual já não era um pobrezinho como antes. Sua pobre mãe, coitadinha, agora fisicamente debilitada, sozinha, permanecia naquele pobre casebre, tristonha, só recebia visita do seu filho uma vez por mês, pois a maior parte do seu tempo era dedicada àqueles que se diziam seus amigos. Chegou, pois um dia em que ele resolveu ir morar no exterior e para não ter preocupações com nada, nem mesmo com sua mãezinha, decidiu colocá-la num asilo. Ela não queria, mas não teve escolha: aquele filho que fora criado com tanto carinho, internou a sua mãe num asilo pertencente à outra federação, longe de casa.

Faltando poucas horas para o embarque, ele resolveu se despedir daqueles considerados seus amigos e, numa grandiosa festa de despedida, bebeu bastante com eles. Tendo se divertido muito, se atrasou a ponto de perder o voo, caso não se apressasse. Partiu em alta velocidade no seu veículo a caminho do aeroporto. Num trecho urbano, muito sinuoso o seu veículo capotou. Sua sorte foi maior porque ali nas proximidades havia uma equipe de bombeiros que lhe desprendeu das ferragens, prestou-lhe os primeiros socorros e em seguida levou-lhe ao hospital.

Ele não morreu, mas o acidente lhe deixou muitas sequelas. Tetraplégico, incapaz de se mover sozinho, não andava mais, pior ainda, precisava do auxílio de cadeiras de rodas, mas não era só isso, quem iria cuidar dele agora? Permaneceu no hospital por muito tempo, sozinho, sem ninguém, sem visitas, até mesmo aqueles que diziam serem seus amigos agora fingiam não lhe conhecer. Toda a sua riqueza foi consumida em tratamentos caríssimos, mas pouco adiantou.

Sua mãe, ao saber da notícia pediu para sair do asilo a fim de cuidar do filho. Então, aquele homem que, em nome da riqueza, desprezou a sua mãe passou a ser cuidado com todo o carinho e amor por ela, como antigamente, naquela velha casinha.

Gilson Vasco

Escritor