Bem-vindo (a)

Para quem acredita na existência de Deus, há sempre uma luz radiante, ainda que a vida pareça mergulhada em profunda escuridão. Chega um momento que precisamos nos libertar dos grilhões, das amarras e correntes que nos enclausuram num pequeno mundo, sairmos da nossa caverna e irmos de encontro à luz.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Leis: para onde vai o transporte coletivo goianiense?


Entre outros direitos assegurados pela Constituição Federal, Leis Estaduais, Leis Municipais e Estatutos, os deficientes físicos, idosos, gestantes e adultos acompanhados de crianças de colo têm preferência garantida nos assentos dos ônibus que integram todas as linhas que operam no transporte coletivo de Goiânia. Como demonstração de respeito e garantia ao direito os veículos são dotados de cadeiras reservadas com distintivos próprios ou convencionais. Certo? Errado!

Respeitoso seria se as Leis, meramente postas no papel, passassem à prática, mas o que vemos no dia a dia é totalmente ao contrário daquilo que deveria acontecer realmente. Ao que nos parece, grande parte dos nossos líderes estão mais preocupados em nos mostrar que temos Leis a fazer com que elas depois de promulgadas sejam executadas, cumpridas. Não obstante, equívocos já são cometidos no ato da sua elaboração. Ora, reservar um percentual de assentos, geralmente de cor vermelha ou amarela, sempre diferente da cor das demais poltronas, indicando que aqueles assentos estão reservados às determinadas classes, não seria o mesmo que isentar os usuários dos demais assentos da obrigação de se retirar dali e ceder aquele lugar para um idoso que, por ventura, não mais encontrou um desses espaços reservados vazios, ou independentemente da situação? Categoricamente sim.

Não culpemos somente aqueles que não estão preocupados com o devido cumprimento das Leis, embora isso também seja uma falta de respeito com os portadores de necessidades especiais. Não necessita ser um assíduo usuário do transporte coletivo goianiense para testemunhar a grande falta de respeito por parte da massa goianiense para com os nossos idosos, gestantes e demais usuários especiais. Basta se aventurar uma única vez numa dessas viagens coletivas para presenciar a rotineira falta de humanismo dos usuários para com seus semelhantes. Desde a ignorância de ocupar os locais reservados, mesmo com a presença de seus legítimos usuários ao lado, em pé, cansados; a incultura de preferir simular um sono, a ceder o local a alguém mais necessitado do assento, naquele momento; os ecoantes gritos e conversas desnecessárias, mais para piadinhas de seres demonstrativamente incultos, os hits enjoativos de celulares e de micro-caixas acústicas, porém com sons altíssimos, sem sequer fazer uso do fone de ouvido, como quem alugasse os ouvidos dos demais passageiros; o esfrega-esfrega, às vezes, obrigatórios (já que os veículos do transporte coletivo goianiense se assemelham a latas de sardinhas, onde pouco pode movimentar-se), outrora intencional dos usuários (o chamado tirar uma casquinha); a caoticidade do trânsito e outros contribuintes para o aumento do stress da massa trabalhadora, estudantil e de todos aqueles que são obrigados a se servirem desse meio de transporte animalesco.

A conclusão que se tira de tudo isso é que ambas as partes demonstram um alto grau de incompetência, incultura e desrespeito. Quem faz as Leis, simplesmente as fazem; aquele que devia zelar pelo cumprimento legal finge não vê o caos; o empresário está mais preocupado em faturar a doar e, finalmente, a massa usuária ignora o senso de humildade e cavalheirismo. O resultado é a continuação doentia de uma sociedade que, a passos retrógrados, caminha para lugar nenhum em busca do nada. Nessa nave do descaso, o coitado da tripulação é o portador de necessidades especiais que além de ficar tímido na hora de poder fazer valer seus direitos, acaba sendo alvo de chacotas de marmanjos que estão sempre prontos para tirar uma com a cara do ser especial, como expressões do tipo: “Você já sentou demais, agora é minha vez.”; “Enche a barriga e agora quer ter preferência.”; “Quem disse que eu tenho culpa de você ter nascido assim?”.

A que ponto chegamos, hein?! Para onde vamos?!

  
Gilson Vasco 
escritor

O cego e o burro



Era quase seis da manhã quando o urro ecoante do jumento despertou-me do sono. Não era a primeira vez, tampouco seria a última. Depois que passei a morar naquele novo recinto, o burro da chácara do vizinho virara o meu despertador.

Ainda muito sonolento alcancei a parada do ônibus. Menos de uma hora depois eu já estava no centro da cidade. Confundia-se com um formigueiro. Eu nada mais era que uma simples formiguinha prestes a atravessar a larga avenida. Logo, o farol abriu permitindo a minha passagem e de mais um turbilhão de pessoas.

— Por que ele não veio? — perguntei para mim mesmo, olhando para trás.

A ponta da bengala tocava no asfalto de modo repetitivo. Voltei, agarrei em seu braço e começa­mos a atravessar a pista pela faixa de pedestre, es­premidos pelos mais apressados.

— Eu sempre falo que o mundo ainda não está perdido?

— Quem? — perguntei.

— Como assim, quem? — olhou para mim e franziu a testa.

— Aproximei minha boca do ouvido esquerdo dele e repeti:

— Quem não está perdido?

— Não estou entendendo... — disse.

Aproximei ainda mais e gritei:

— Perguntei quem o senhor disse que ainda não está perdido.

— Continuo não lhe entendendo. O que está querendo fazer?

— Fazer? — retruquei em tom gritante.

Para não ter dúvida da compreensão, abracei-o calorosamente e perguntei ainda mais alto:

— Fazer?

— Respeite o meu estado! — ordenou num tom agressivo.

— Calma — pedi, compassadamente.

Segurei-o, ainda mais forte, temendo que sua fragilidade o derrubasse em meio à faixa de pedes­tre. Preguei meus lábios na orelha dele e gritei mudando de assunto:

— Deve ser o barulho?

— Creio que sim? — concordou.

Quando o semáforo ameaçava a abrir estávamos quase finalizando a travessia e por questão de segurança avisei-o:

— O barulhão, o senhor não vai poder ouvir, mas preste atenção no sinal. Logo, logo vai abrir.

Nada respondeu-me. Apenas ameaçou acelerar o passo.

— Ainda temos um tempinho — acalmei-o.

Ao atingir a calçada do outro lado da avenida, de supetão ele se soltou de mim e ia se afastando. Cheio de dúvida, olhou em minha cara e perguntou.

— Há quanto tempo foi atingido?

— Atingido? — interroguei-o, sem nada entender.

— Pela surdez — disse naturalmente.

— Surdez? — gritei para ter certeza de que ele me ouviria e continuei:

— Não, meu senhor, eu não sou acometido de surdez.

— Não? — conferiu.

— Não — reafirmei, aproximando ainda mais dos ouvidos dele.

— Escuta-me, por favor... Então por que tem mania de esfregar no outro, perguntar tudo e falar tão alto? — questionou-me.

Não pude segurar a gargalhada, por mais que tentasse. Encostei ainda mais nele, levei minhas mãos junto à boca para direcionar o som aos ouvidos do velho e quase gritando respondi:

— Para o senhor ouvir melhor, ora!

— Eu? Ouvir melhor? — zombou.

— Não é tão surdo? — perguntei com a voz alta.

— Surdo? O moço está enganado. Minha deficiência é visual! Por que acha que demorei tanto para começar a atravessar a faixa? — explicou, à medida que se afastava de mim tocando sua bengala nas pernas dos transeuntes.

Somente depois que passei por burro compreendi que ele era cego e que de surdo o velho não tinha nada.

Gilson Vasco