Bem-vindo (a)

Para quem acredita na existência de Deus, há sempre uma luz radiante, ainda que a vida pareça mergulhada em profunda escuridão. Chega um momento que precisamos nos libertar dos grilhões, das amarras e correntes que nos enclausuram num pequeno mundo, sairmos da nossa caverna e irmos de encontro à luz.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O cego e o burro



Era quase seis da manhã quando o urro ecoante do jumento despertou-me do sono. Não era a primeira vez, tampouco seria a última. Depois que passei a morar naquele novo recinto, o burro da chácara do vizinho virara o meu despertador.

Ainda muito sonolento alcancei a parada do ônibus. Menos de uma hora depois eu já estava no centro da cidade. Confundia-se com um formigueiro. Eu nada mais era que uma simples formiguinha prestes a atravessar a larga avenida. Logo, o farol abriu permitindo a minha passagem e de mais um turbilhão de pessoas.

— Por que ele não veio? — perguntei para mim mesmo, olhando para trás.

A ponta da bengala tocava no asfalto de modo repetitivo. Voltei, agarrei em seu braço e começa­mos a atravessar a pista pela faixa de pedestre, es­premidos pelos mais apressados.

— Eu sempre falo que o mundo ainda não está perdido?

— Quem? — perguntei.

— Como assim, quem? — olhou para mim e franziu a testa.

— Aproximei minha boca do ouvido esquerdo dele e repeti:

— Quem não está perdido?

— Não estou entendendo... — disse.

Aproximei ainda mais e gritei:

— Perguntei quem o senhor disse que ainda não está perdido.

— Continuo não lhe entendendo. O que está querendo fazer?

— Fazer? — retruquei em tom gritante.

Para não ter dúvida da compreensão, abracei-o calorosamente e perguntei ainda mais alto:

— Fazer?

— Respeite o meu estado! — ordenou num tom agressivo.

— Calma — pedi, compassadamente.

Segurei-o, ainda mais forte, temendo que sua fragilidade o derrubasse em meio à faixa de pedes­tre. Preguei meus lábios na orelha dele e gritei mudando de assunto:

— Deve ser o barulho?

— Creio que sim? — concordou.

Quando o semáforo ameaçava a abrir estávamos quase finalizando a travessia e por questão de segurança avisei-o:

— O barulhão, o senhor não vai poder ouvir, mas preste atenção no sinal. Logo, logo vai abrir.

Nada respondeu-me. Apenas ameaçou acelerar o passo.

— Ainda temos um tempinho — acalmei-o.

Ao atingir a calçada do outro lado da avenida, de supetão ele se soltou de mim e ia se afastando. Cheio de dúvida, olhou em minha cara e perguntou.

— Há quanto tempo foi atingido?

— Atingido? — interroguei-o, sem nada entender.

— Pela surdez — disse naturalmente.

— Surdez? — gritei para ter certeza de que ele me ouviria e continuei:

— Não, meu senhor, eu não sou acometido de surdez.

— Não? — conferiu.

— Não — reafirmei, aproximando ainda mais dos ouvidos dele.

— Escuta-me, por favor... Então por que tem mania de esfregar no outro, perguntar tudo e falar tão alto? — questionou-me.

Não pude segurar a gargalhada, por mais que tentasse. Encostei ainda mais nele, levei minhas mãos junto à boca para direcionar o som aos ouvidos do velho e quase gritando respondi:

— Para o senhor ouvir melhor, ora!

— Eu? Ouvir melhor? — zombou.

— Não é tão surdo? — perguntei com a voz alta.

— Surdo? O moço está enganado. Minha deficiência é visual! Por que acha que demorei tanto para começar a atravessar a faixa? — explicou, à medida que se afastava de mim tocando sua bengala nas pernas dos transeuntes.

Somente depois que passei por burro compreendi que ele era cego e que de surdo o velho não tinha nada.

Gilson Vasco

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pela sua participação, seja comentando ou simplesmente visualizando.